sexta-feira, 15 de outubro de 2010

"É terça-feira e não cheira nem a coiratos nem a fêveras"

No coração de Lisboa o Projecto Público foi encontrar o mercado de rua mais antigo da cidade tentando perceber como é o dia-a-dia na Feira da Ladra. Um local que daria um verdadeiro estudo histórico-sociológico.
É díspar o cheiro que encontramos ao caminhar pela rua do Arco Grande de Cima, com o Mosteiro de São Vicente do nosso lado direito e vislumbrando já a azafama matinal do Campo de Santa Clara (Link Mapa). É terça-feira e não cheira nem a coiratos nem a fêveras.

"Uns óculos Ray-Ban, jovem? Ficam-lhe mesmo bem! Ora experimente!" Somos assim recebidos quando chegamos à Feira da Ladra. Aquele rapaz munido de óculos de sol e pulseiras do equilíbrio parece ter assumido a função de mordomo, de cicerone. Não que isso seja mau. Não de todo. Quando passamos o Arco do Mosteiro assumimos, aceitamos, que estamos a entrar num mundo diferente, sem paralelo e com precedentes antigos. De facto, as origens da Feira da Ladra remontam ao século XIII o que lhe conferem o estatuto de mercado de rua mais antigo de Lisboa. 
Tudo se vende na Feira da Ladra
Continuamos o nosso caminho e apercebemo-nos que andar pela Feira implica ter uma série de atributos, sendo o primeiro dos quais o equilíbrio (e não, não comprámos uma pulseira ao nosso anfitrião). Os artigos estão expostos ora em bancas, ora no chão, num simples lençol (prático o suficiente para rapidamente evacuar o recinto, evitando problemas de maior com as autoridades), implicando que quem vagueia pelo espaço tenha todo o cuidado do mundo para não pisar qualquer dos artefactos. 

Para além disso, quem vai à Feira da Ladra tem de estar receptivo a receber mais do que aquilo que pretende dar: receberá uma verdadeira lição de história, porque os produtos que se vendem no recinto têm esse imperativo - uma história conexa - são velharias, artigos usados, cuja vida lhes parece ter dado uma segunda oportunidade antes de serem totalmente reciclados.
Perto da Rua da Verónica, a Rua que a subir nos levará até à Graça, situa-se um café no qual fomos encontrar Maria Rosália, vendedora na Feira da Ladra desde os anos 80 ("o ano ao certo não me recordo" - confessa-nos).

PP - Bom dia! Como está a correr hoje?

MR - Esta Feira já teve dias melhores. Quem cá vem ou vem à procura de DVD's e coisas de tecnologia ou então vem só para perguntar os preços.

PP - É por isso que aqui está? Não deveria estar na banca?

MR - Nós aqui temos um acordo. Os vizinhos das bancas olham uns pelos outros. Vamo-nos revezando. Quando eu quero vir ao café tomar qualquer coisinha peço ao Artur dos Milhões que guarde a minha banca e vice-versa.

PP - Disse-nos que está aqui desde os anos 80...acha que o tipo de pessoas que vêm à Feira mudou? 

MR - Então não?! Nos anos 80 esta era uma Feira de referência. Vinha cá gente de Lisboa inteira. Havia bancas de comida, de calçado, de coisas para a casa...

PP - E velharias?

MR - Isso sempre houve. Mas havia outras coisas. Hoje só cá vem quem não tem dinheiro. As coisas já são baratas, já quase não ganhamos para comer, e mesmo assim as pessoas querem sempre mais barato. Olhe, sabe o que lhe digo? Esta Feira há-de morrer ou então cair na mão dos indianos.

PP - Enquanto passeávamos pela Feira encontrámos alguns jovens produtores de cinema, decoradores de montras, etc. Acha que os jovens estão cada vez mais interessados em coisas antigas que não conheceram? Acha que podem ajudar a revitalizar esta Feira?

MR - Não acredito muito nisso. Vêm cá algumas vezes mas não levam grande coisa e pior que isso...trazem pouco dinheiro. 

Despedimo-nos de Maria Rosália porque entretanto o vendedor Artur dos Milhões vem substitui-la no café - parece que alguém quer saber o preço de uma televisão Grundig a preto e branco, trazida por Maria Rosalina para a Feira. "Está a funcionar que é uma maravilha, jovem. É só limpá-la e tem aí televisor que é um espectáculo. Por ser para si faço-lhe isto a 20 euritos". 

Sem dar por isso, o comprador está já a segurar na televisão e a levar para casa um pedaço da história televisiva portuguesa. Maria Rosalina sorri, diz "bem-haja" e guarda o dinheiro na bata preta que sempre a acompanha.

Artur dos Milhões
Estará a Feira da Ladra
adormecida?
Na Feira da Ladra é possível "encontrar de tudo e de todos", confidencia-nos, mais tarde, Artur dos Milhões, assim conhecido devido ao negócio que efectua - numismática. Desde tendas de músicas, bancas de DVD's e jogos de vídeo, roupa (nova e usada), utensílios para a casa e ferramentas, velharias (livros, electrodomésticos, e outros que tais), tudo se mistura numa eterna prodigalidade de produções culturais e históricas humanas. Para além disso, as pessoas que frequentam a Feira são tão diferentes quanto os artigos por lá vendidos: jovens com cultura retro, turistas a contemplar a maravilha, pessoas à procura de pechinchas, idosos que matam o seu tempo a passear pelos intermináveis corredores de bancas, etc. 

Dir-se-ia que na Feira da Ladra se encontra uma verdadeira miscelânea histórica e sociológica, digna de registo pelos mais prestigiados investigadores. Um local que dá gosto visitar, pois de lá saímos sempre com a certeza de ter ficado a conhecer um pouco melhor o mundo em que vivemos. 


Projecto Público
14 de Setembro de 2010

Um Projecto (realmente) Público

Senti esta necessidade. A necessidade inequívoca de, em primeira instância, estar informado e, em segundo lugar, informar. 

Mas informar como? 

Copiando demais notícias, ao minuto? Contar aquilo que já todos sabem?

Parecia-me que isso seria redutor pelo que o objectivo deste Blog passa por contar histórias que me pareçam importantes para que aprofundemos o nosso conhecimento informativo e social, em diversos temas que se assemelhem oportunos. 

Deixando para trás todo e qualquer preconceito ou convicção, ao longo dos próximos tempos, espero brindá-los com notícias, reportagens, ensaios, etc. com o objectivo de acrescentar algo às vossas vidas: 

"A construção da vida encontra-se, actualmente, mais em poder dos factos do que das convicções"
(Walter Benjamin)